Academia 19.11.2020 13H10
Dos pobres ao céu através de esmolas. As crenças, custos e sexualidade das Misericórdias
Respostas fazem parte da obra "Vestidos de caridade: assistência, pobreza e indumentária na Idade Moderna. O caso da Misericórdia de Braga”, de Luís Gonçalves Ferreira, estudante de doutoramento em História na UMinho. Trabalho foi distinguido com o prémio Lusitania História.
É considerada uma visão inovadora do ponto de vista histórico, visto que opta por analisar o vestuário dos pobres e não das elites. “Vestidos de caridade: assistência, pobreza e indumentária na Idade Moderna. O caso da Misericórdia de Braga” é a designação da dissertação de mestrado de Luís Gonçalves Ferreira, estudante de doutoramento em História na Universidade do Minho, e recém galardoado com o Prémio Lusitania História, da Academia Portuguesa da História, que será entregue a 9 de Dezembro.
Este trabalho resulta de uma junção entre a paixão pela história e o contexto familiar do autor. Trata-se de um retrato de parte dos pobres da cidade dos arcebispos, entre o século XVI e XVIII, porém ao contrário do esperado não aborda apenas a questão do vestuário, muito "renegada" no estudo da história.
Aos microfones do UM I&D, o estudante "levanta o véu" sobre temas como a sexualidade clerical, as razões que estavam por detrás destas doações e os impactos nas contas das Misericórdias.
Esmola aos pobres era um passe para chegar ao céu.
A sociedade portuguesa na Idade Moderna era extremamente hierarquizada e analfabeta. É estimado que mais de 70% da população vivesse com dificuldades extremas, ou seja, não conseguiam pagar de forma autónoma a sua alimentação, habitação e vestuário.
Face a este panorama as Misericórdias eram a resposta a muitas destas necessidades, nomeadamente, ao nível da indumentária. Luís Gonçalves Ferreira revela que estas doações iam além de uma simples dádiva, "representavam a crença no purgatório e que através de actos físicos, como esmolas, conseguiam atingir Deus", uma vez que os pobres são vistos como "representantes de Deus na Terra".
Dada a importância desta acção, a dádiva era feita publicamente, de acordo com os dados recolhidos pelo estudante da UMinho. Visto que a procura era superior à oferta, as Misericórdias tinham de seleccionar pobres. Os merecedores como viúvas e órfãos acediam a roupas com melhores condições, ao contrário, por exemplo, dos pedintes vistos, na época, como alguém que não quer trabalhar.
No caso da Misericórdia de Braga, o provedor chegou a contribuir para esta acção com "património próprio" dada a importância de atingir a Deus.
Que impacto teriam as esmolas de roupa e outros objectos de indumentária na despesa geral da instituição?
O jovem historiador avança que 5% da despesa institucional da maioria das Misericórdias era utilizada para estes fins, sendo que que existem dados que comprovam que no caso da Misericórdia de Braga esse valor alcançou os 23%.
O que diz a história sobre a sexualidade do clero?
O estudante da UMinho foi além das indumentárias e "levantou o véu" sobre a masculinidade clerical. Luís Gonçalves Ferreira descobriu algumas referências que permitem afirmar que na Idade Moderna já existiam "diversos géneros sexuais".
Para o académico, o historiador tem hoje, mais do que nunca, a responsabilidade de comunicar estas realidades e sociedades extremamente desiguais. Relembrar que as pessoas sem Estado Social "morriam de fome", contudo pequenos gestos a nível local podem fazer a diferença.
Actualmente o estudante da academia minhota já está a trabalhar numa nova investigação, desta feita para a tese de doutoramento. Essa irá recair sobre as cidades do Porto e Lisboa. A ideia é perceber a realidade dos pobres, além disso entrará por uma nova área, a da ecologia.
À RUM explica que devido à falta de produtos, os tecidos utilizados para as indumentárias eram usados até se tornarem "farrapos". Por conseguinte, esses tecidos eram reutilizados para criar papel. Alguns ensinamentos que podem dar um forte contributo, nos dias de hoje, face às alterações climáticas.