S. Geraldo: De templo de imagens em movimento a casa da arte em mutação

Já foi uma sala mítica da cidade de Braga. Agora, é apenas um edifício com a porta fechada. Assim está desde os anos 90. O ecrã já não acende, mas, na memória de Braga, continuam a projetar-se histórias que nunca se apagam.
Carlos Viana é filho do primeiro projecionista do antigo cinema S. Geraldo, António Viana. António, agora com 96 anos, herdou o saber do pai, Francisco Viana, que foi projecionista do Theatro Circo.
Construído em 1544, o edifício, localizado junto ao Largo Carlos Amarante, acolheu um convento e, depois, no século XX, um Salão Recreativo, que só dá palco à sétima arte em 1950, aí sim como cinema S. Geraldo.
Fruto da idade, a memória de António já não o permite recuar a esse tempo. Por isso, conhecemos as histórias através do filho, Carlos.
“A minha primeira recordação do São Geraldo é eu miúdo e, do balcão, alguém atira balões para a plateia”.
Desde muito pequeno que Carlos frequentava o cinema, pela mão do pai e com direito a desconto. “Eu estava sempre à espera de que aparecesse um filme para maiores de seis anos, para poder ir ao cinema”, revelou. O primeiro filme a que assistiu, “Marisol e o Burrinho Sábio”, continua presente na memória.
Aos domingos, depois do passeio com a mãe, Carlos ia esperar o pai ao cinema. “Quando o cinema estava para acabar, os empregados mandavam-me ir ter com o meu pai, eu ia para a cabine e convivia com todo aquele cerimonial”, afirma. Ainda se lembra do procedimento: “as primeiras máquinas eram totalmente castanhas, tinha dois carvões, um positivo e um negativo, que, com o aproximar, fazia uma faísca, que permitia projetar o filme”. A cabine, recorda ainda Carlos, “ficava no último piso, era muito quente”. “Cada bobina dava para cerca de 12 minutos, e, portanto, de 12 em 12 minutos tinha que haver mudança de máquina. Havia aquelas marcas dos filmes, um X ou um O, que era para alertar o projecionista que estava na hora de cortar uma máquina e avançar a outra”, aponta ainda, lembrando também que “era necessário ajustar a fita no início para não ficar desenquadrada do ecrã”.
Carlos recorda “o cheiro do balcão e os ruídos das máquinas a trabalhar”
Das histórias que ouvir em casa, Carlos Viana lembra ainda a de “um médico do Hospital de S. Marcos, que estava de urgência, mas ia ao cinema e, se houvesse alguma coisa de muito urgente, ligavam do Hospital para a bilheteira, e lá iam procurar o doutor, que estava na fila tal, no número tal”. O pai que lidava com cinema desde os 15 anos “tinha revistas da área e argumentos de filmes”, que a família ainda guarda.
Voltando ao S. Geraldo. Inicialmente, havia cinema às terças e quintas-feiras, às 17h00, aos sábados, às 16h00, e aos domingos, às 15h30. “Às vezes, os filmes ficavam em exibição apenas um dia. Com o avançar dos tempos, começaram a ir mais pessoas ao cinema e uma sessão, às vezes, não era o suficiente para a procura que havia, chegando o mesmo filme a permanecer em cartaz duas semanas”.
Por ali passaram também revistas e até atuações como a de Nelson Ned. Carlos recorda o piano junta ao palco e lembra “o cheiro do balcão e os ruídos das máquinas a trabalhar”.
Espólio do cinema S. Geraldo pode vir a ser integrado no Museu de Braga
Na década de 90, o S. Geraldo deixa de ter programação regular e acaba por fechar as portas. António Viana tinha 60 anos e dedicou os cinco anos seguintes à reparação de eletrodomésticos, atividade que já exercia em paralelo.
O edifício esteve para ser um hotel, depois, foi idealizada pela Arquidiocese uma área comercial, com lojas e restaurantes, e até apartamentos.
Agora, propriedade do Município, o antigo cinema dará lugar ao Media Arts Centre. O concurso público para a empreitada de cerca de 14 milhões de euros já foi lançado para concurso e as propostas devem ser enviadas até 15 de setembro.
Quem ali viveu momentos marcantes, espera que a história daquele espaço seja conservada e divulgada às novas gerações. “Eu acho que é importante preservar a memória, várias pessoas com quem eu falo e que sabem da minha ligação com o São Geraldo, também dizem que têm boas recordações daquela sala. Eu acho que era importante preservar aquelas máquinas num museu, porque a história da cidade também se faz com estes edifícios e vivências”, diz Carlos Viana.
Ao que a RUM apurou, há a possibilidade de o espólio que resta do cinema S. Geraldo ser integrado no Museu de Braga.
O S. Geraldo, como muitos o conheceram, já não projeta filmes na tela, mas prepara-se para acender uma nova luz, onde a arte continua a ser protagonista.
