O vírus fulminante (e democrático) que vai mudar a história

Há quatro meses, ninguém sabia da existência do SARS-CoV-2. Depois de detectado na China, espalhou-se por quase todos os países do mundo, infectando mais de 1,6 milhões de pessoas – e sempre a somar. Sem preconceitos, o vírus mais fulminante do século XXI já colapsou sistemas nacionais de saúde e estima-se uma recessão económica mundial sem precedentes.
O futuro é ainda incerto mas, numa pandemia que atinge uma escala a que poucos terão testemunhado, já será possível avizinhar efeitos transformadores. Olhar para o presente é também olhar para o passado e as epidemias determinaram o fim de guerras e provocaram revoluções económicas e morais.
“Quando a crise passar, é provável que haja um movimento que recupere a importância do papel do Estado, sobretudo na saúde. Perante situações extremas como esta, a protecção do Estado aos mais fracos é mais evidente aos olhos de todos”, diz à RUM Luís Cunha, professor no Instituto de Ciências Sociais da Universidade do Minho e investigador do Centro em Rede de Investigação em Antropologia (CRIA).
A protecção da saúde dos mais vulneráveis é corroborada por Frank M. Snowden, professor emérito de Medicina em Yale. À publicação norte-americana New Yorker, o especialista aponta que “a saúde dos mais fracos é determinante para a saúde de todos e exige-se preparação“.
“Mais do que a divisão de raça, etnia ou do estatuto económico, o pensamento é que todos somos parte da mesma espécie”, lembra Snowden.
A perspectiva de um maior peso do Estado – e consequentemente de um reforço de investimento na saúde – é, no entender de Luís Cunha, um cenário fortemente em equação. “No fim, quando as pessoas puderem comparar os números entre os Estados Unidos, que não têm serviço nacional de saúde, ou da Alemanha, que tem o oposto, podem tirar-se conclusões”, apontando ainda a mudanças no paradigma político no domínio ideológico.
“Terão de ser os Estados a assumir parte das responsabilidades e a social-democracia poderá ser uma solução para o pós-crise”, diz Luís Cunha.
O perigo real e o percepcionado
Para já vive-se a crise sanitária. Ainda sem vacina para travar a pandemia, e sem vista para “a luz ao fundo do túnel” – como não se cansa de reiterar o primeiro-ministro António Costa -, como superar o medo de um vírus que esvaziou espaços públicos e separou familiares e amigos?
“Mesmo que seja levantado o Estado de Emergência no final de Maio, as pessoas continuarão a ter medo. A frequência de lugares públicos continuará a ser relativamente restringida mesmo que não haja necessidade”, considera Luís Cunha.
O regresso à normalidade será sempre incerto e à mercê da relação entre medo e razão.
“Todas as crises têm esse lado: a percepção entre o perigo real e o perigo percepcionado. Enquanto houver a percepção do perigo, as pessoas vão continuar em casa e, no caso até de países como a Hungria, a aceitar medidas de sistemas ditatoriais. Isso é perigoso e temos de ser capazes de encontrar caminhos equilibrados”.
