Covid-19 e Gripe Espanhola: comparar é inevitável, mas “perigoso”

Ao longo dos séculos o mundo tem sido afectado, periodicamente, por surtos pandémicos. Exemplos disso são a Peste Negra, Gripe Espanhola, Tuberculose, Cólera, até ao actual Covid-19. Nesta publicação vamos analisar as semelhanças e diferenças entre o século XX e XXI, período em que Portugal, assim como o resto do mundo, foram atingidos pelo surto pandémico da pneumónica. Será a história cíclica? O que têm em comum as pandemias do novo coronavírus e da gripe espanhola?


“Não podemos cometer anacronismos”


A afirmação é da professora do Departamento de História da Universidade do Minho, Alexandra Esteves. Aos microfones da RUM, a docente alerta para os “perigos” de realizar comparações entre o vírus SARS-COV-2 e a Gripe Espanhola. Para a especialista “as doenças repetem-se, mas as pandemias não”. Isto porque existem doenças como a tuberculose, que se prolongam no tempo, porém as pandemias acabam por não poder assumir os mesmos contornos, isto porque os contextos variam.

Ou seja, quando falamos na pneumónica e no SARS-COV-2 estamos a referir-nos a dois contextos históricos distintos e, principalmente, a dois vírus diferentes. A investigadora sublinha também o facto da Gripe Espanhola registar uma taxa de mortalidade mais elevada que o actual surto.

De acordo com o historiador formado pela UMinho, Joaquim Silva Gomes, a pneumónica foi a pandemia mais “mortífera” desde a Peste Negra. No total são estimados entre 20 a 100 milhões de óbitos. Acabou por afectar 25% da população mundial. Em Portugal, a pandemia foi “devastadora” e acabou por agravar a crise económica do país. Há 100 anos a cidade dos arcebispos era bastante mais desorganizada e suja.


“As pessoas varriam o lixo para as portas, muitas casas tinham o seu chão em terra, era comum ouvir a expressão “água vai”, os cavalos eram presos à porta e muitos cidadãos criavam animais, como porcos, nos prédios da cidade. Os saneamentos não existiam e as ruas eram limpas de vassoura”, descreve o professor através de uma análise do delegado de saúde da época, Vicente Braga.

Também na altura, Braga foi um dos concelhos mais fustigados pela pandemia. No século XX foram 754 as pessoas que sucumbiram à pneumónica. Nos restantes concelhos do quadrilátero urbano Barcelos registou 700 mortos, Vila Nova de Famalicão 579 e Guimarães 432. No resto do distrito Vila Verde e Fafe somaram 499 vítimas mortais, Cabeceiras de Basto 312, Celorico de Basto 228, Vieira do Minho 207, Esposende 183, Póvoa de Lanhoso 173 e Terras de Bouro 95.

Ao contrário do novo coronavírus a pneumónica atacava mais os jovens e as mulheres. Joaquim Silva Gomes revelou, no ciclo de conferências “Um olhar sobre Braga”, organizado pela Biblioteca Lúcio Craveiro da Silva, que o mês de Março de 1919 foi o mais dramático. Em Braga foram sepultadas 258 pessoas das quais 76 eram menores abaixo dos sete anos.

Pandemias podem criar problemas graves de xenofobia e crescimento de movimentos extremistas.


Ao longo da história, em cada pandemia, a população tende a procurar “um bode expiatório, ou seja, alguém para punir e responsabilizar pelo surto”. Segundo a docente da academia minhota, este género de atitude conduz muitas vezes a episódios de racismo, xenofobia e discriminação.

A título de exemplo, no caso da Peste Negra o bode expiatório foram os judeus. Como acabaram por ser menos afectados pela peste, uma vez que por razões religiosas lavavam frequentemente as mãos e não bebiam água de poços, foram acusados de tentar envenenar os cristãos. O resultado ficou marcado como um capítulo negro da história com milhares de judeus perseguidos e queimados.

Actualmente, têm surgido casos de violência para com cidadãos asiáticos no Reino Unido e casos de xenofobia no Brasil. Outra das preocupações dos historiadores passa pelo possível crescimento de adeptos da extrema-direita.

Medidas para diminuir a propagação da Covid-19 são similares às de há 100 anos.


“Não vivemos no admirável mundo novo”, apesar dos progressos continuamos a utilizar medidas que eram igualmente aplicadas há séculos atrás, como é o caso da quarentena. À Universitária, a docente da UMinho revela também que há 100 anos foram criados, tal como hoje, hospitais de campanha. “Essas unidades foram essenciais no pico da pandemia de Gripe Espanhola, assim como no segundo surto pandémico que foi o mais violento”, refere.


Recorde-se que o mundo, em 1919, estava a recuperar dos efeitos nefastos da 1ª Guerra Mundial. Foram fechadas fronteiras assim como escolas, cafés e prisões para “higienização”. Joaquim Silva Gomes revela que existem relatos da época que em Braga as ruas da cidade foram lavadas com as águas do Cávado. Hoje vemos os funcionários da Agere a proceder à higienização, por exemplo, de caminhos e bancos de jardim.

A professora do Departamento de História da UMinho relata que também na época existiram “cordões sanitários”. Uma decisão incompreensível para os habitantes do Alto Minho que viam assim impedidos os seus negócios com a Galiza. A população também foi aconselhada a intensificar os cuidados de higiene pessoal e das casas.

Recorde-se que na altura a região do Minho estava a ser afectada por outras patologias como a Tifo, associada a maus cuidados de higiene.

Qual o papel dos media nos séculos XX e em 2020?


Os media tinham uma função pedagógica muito importante. Alexandra Esteve relata que, tal como no século XXI, a comunicação social transmitia aos cidadãos um conjunto de orientações fundamentais das autoridades sanitárias para fazer frente às pandemias.

Por outro lado, tinham uma posição crítica, ou seja, procuravam examinar a actuação das autoridades nomeando casos de negligência ou mesmo falta de actuação das entidades responsáveis. De lembrar que o Portugal de 1919 vivia em clima de instabilidade. O Porto foi capital com a restauração da Monarquia, no entanto passados 25 dias Lisboa voltava a receber o título. O país passou, então, a República. A censura era uma realidade.

“Durante algum tempo debateu-se o manto de silêncio que caiu sobre a Gripe Espanhola”, partilha a docente. Em Portugal a imprensa nacional não dava particular destaque à pandemia. Contudo, nas páginas dos jornais locais a realidade era outra. “Davam conta do desenvolvimento da pandemia a nível local, nacional e até internacional. Hoje são excelentes mecanismos para estudar estes surtos pandémicos, em particular a Gripe Espanhola”, revela. 

Surtos pandémicos serão mais frequentes?


A resposta a esta pergunta não pode ser dada pelos livros de história, contudo alguns comportamentos do Homem têm aumentado os receios dos investigadores. “O crescimento urbano e o crescimento populacional têm provocado desequilíbrios. Deve existir equilíbrio entre o homem e a natureza. Se continuarmos a destruir espécies podemos convergir para que microrganismos acabem por escolher o homem como novo hospedeiro, o que origina doenças que podem assumir características epidémicas”, conclui.


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Vanessa Batista
Vanessa Batista

Jornalista na RUM

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